segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Epifania

Eu foi naquele dia que eu morri. Ou não acordei. Algo assim. Todos os meus sonhos, meu planos e meus desejos nunca mais seriam realizados. O mais estranho de tudo foi a normalidade. Era um dia qualquer, como qualquer um outro. 

Me deitei, dormi, não acordei. E agora? Nasci em 1980. Confesso que minhas primeiras lembranças, ainda que confusas, devem ser de 1983, 1984. Antes disso, não me lembro. É como se eu não tivesse existido. De fato, não existi antes de 1980. E agora, eu não existo mais.

O que foi isso? Existência? Existencialismo? Um flash, um sopro, sonhos, alegrias, tristezas e agora, nada. Tinha tantas viagens para fazer. Tantas coisas para dividir. Um filho para criar. Uma esposa para amar. Mas assim, de repente, acabou tudo. E acaba mesmo. A história existia antes de 1980 e a história vai continuar existindo depois de hoje. Somos insubstituíveis - apenas para nós mesmos.


sexta-feira, 10 de junho de 2016

Vivendo e morrendo

Todos os dias, morremos um pouco. Seria clichê apelar para a biologia e demonstrar que pequenas parcelas vivas, palpáveis do nosso ser, se vão todos os dias. Há, claro, a renovação celular. Mas o certo é que, com o passar do tempo, nossos tecidos se vão mais rápido que do que se regeneram, envelhecemos e, por fim, morremos.

Estar vivo é isto; morrer aos poucos. Uma morte lenta, gradual, certeira, impossível de ser impedida. E, enquanto estamos vivos, estamos fadados também à uma outra forma de morte; a morte dos nossos entes e amigos queridos. 

A verdade, nua e crua, é que, ou se enterra, ou se é enterrado. 

Sobreviver, morrendo aos poucos. Morrendo a própria morte e suportando a morte dos que amamos. Quanto mais se vive, mais se morre; mais se enterra seus amores, mais se vê padecendo, aos poucos. Quando chegamos aos nossos 80, 90 ou mesmo 100 anos, já perdemos tantas pessoas, tantos amores quantas células, órgãos ou tecidos.

Eu me sinto triste. Mas é uma tristeza estranha, vivida em terceira pessoa. Olho-me a mim mesmo com uma certa indiferença que me faz ter vergonha da forma que me porto, sedado, incapaz de gritar, de chorar, de dizer 'eu te amo', te dizer 'adeus'.

Quando morrermos, apenas concluímos um ciclo de morte que se iniciou logo no dia em que nascemos.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Apoptose, autocompreensão e autofagia

I - Caos

Estou suspenso. Desfeito, mas não em peças, porque Descartes me enganou. Me desarranjei na vã esperança de compreender a mim pelos mais ínfimos pedaços do meu ser e, absorto, descobri que não me constituo de partes. Não me reduzo cartesianamente à elementos autônomos, desmontáveis  e substituíveis.

II - Érebos

Epifania. Eu não me desmontei; eu me destruí. Não há encaixes, eu nunca fui um quebra-cabeças. Aquilo que, pouco à pouco, rompia e rasgava, era eu mesmo. Um todo, sem partes. Agora, sou partes de nenhum todo. Enquanto acreditava, peça à peça, estar me desmontando, eu estava ruindo, desmoronando.

III - Gaia

Entre os escombros daquilo que eu fui um dia, uma pequena semente parece ganhar vida. Em meio aos labirintos dos cacos onde outrora pulsavam ideias e sonhos, o gérmen caminha em direção à luz. Ele parece absorver, alimentar-se dos detritos, sólidos e etéreos, que um tolo um dia julgou ser um ente, tal qual um relógio, compreensível em partes.