quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O espelho d'alma

Há anos havia estado nesta mesma casa, nesta mesma rua. Nada estava diferente, até mesmo sua cor permanecia a mesma, embora renovada. Lembrei então daquela janela, no sótão, com aquela maravilhosa vista para a vila.

Da última vez que havia olhado por esta janela, vi crianças alegres brincando, com o brilho amarelo do sol em suas faces. Lembro que queria me juntar a elas. Vi árvores, belas, corpulentas, antigas e retorcidas, desafiando a gravidade, chacoalhando à brisa que embalava seus galhos e farfalhavam suas folhas.

As flores no jardim refletiam cores radiantes que se destacavam no gramado verde. Aves e borboletas dançavam no ar, enquanto as abelhas trabalhavam incessantemente. De relance, vi um jovem ajudando uma senhora, buscando-lhe alguns papéis que o vento lhe roubara. Era uma lembrança muito boa.

Ao chegar, porém, àquela mesma janela, descortinei outra paisagem. Vi, logo, uma grande algazarra composta por crianças intrépidas se maltratando. Elas corriam de um lado para o outro, com os olhos cerrados, incomodadas com o sol. Senti vontade de censurá-las, gritar e mandá-las às suas casas. As árvores, outrora majestosas, mal suportavam a si mesmas, velhas e cadentes.

As flores no quintal pareciam prostitutas, se abriam e se entregavam a toda espécie de parasitas e insetos. Os pássaros pardos, cujas cores foram roubadas, eram mudos, imundos e horrendos. Teimavam em rasgar a paisagem como se fossem corvos em busca de carniça. Vi o descaso no rosto de um jovem, correndo para buscar um documento que uma velha de fisionomia amargurada deixara cair.

Como pôde o mundo mudar tanto em alguns anos, em uma década? Olhei novamente para fora. Lembrei-me da visão que guardava com carinho. Só então me dei conta. A paisagem continuava a mesma. Eu é que estava diferente.

Escrito em 06/07/2005