terça-feira, 6 de julho de 2010

Sobre a J.*

Não a conhecia. É assim que prefiro começar. Não quero aqui lamuriar, chorar, tão pouco apresentar minhas condolências à família. Neste ponto, prefiro o silêncio. Às vezes, não falar nada tem mais peso, demonstra mais respeito e sinceridade do que a lágrima sem sal, do que as palavras vazias, decoradas e repetitivas. Seria apenas mais uma frase, semelhante àquelas que irão ouvir por um bom tempo.

Posso até acrescentar que, pelas poucas vezes que a vi, cometi um grave erro: julguei-a por generalização. Era apenas mais uma burguesa, “Patricinha”, cujos sentimentos vazios e inócuos reinavam em seu contexto social, regado a muito dinheiro do pai e indiferença para com o resto do mundo. Estava errado, e se possível fosse, pedir-lhe-ia desculpas. Ela não era assim. Sobre os seus familiares, assim como muitos (não todos) que velaram seu corpo, eu não consigo, ainda, ter uma opinião diferente. Acho-os arrogantes. Ou então insisto no mesmo erro. Mas ela, ela não.

“Olhar triste” definiu alguém que igualmente não a conhecia, e pouco contato teve. Hoje, muitos julgam seu ato, sua vida, sofrem, rezam ou, quem sabe, respiram aliviados. Infelizmente, a grande maioria o fez com indiferença. Apenas encenam no fúnebre palco que a morte descortina.

É tão simples. Poucos são capazes, seja qual for a situação, o motivo, de compreender tal ato. Infelizmente, rotulam de covarde essa escolha. Eu, particularmente, discordo. Não há coragem maior na vida do que abrir mão dela. Mas isso pouco importa.

Não há como, racionalmente, compreender o porquê. Ora, isto não foi decidido racionalmente. Temos por hábito respirar fundo, refletir e calmamente julgar as pessoas e seus atos quando, no entanto, estas praticaram um ato com pressão, tristeza, raiva, angustia e desespero insuportáveis. Como entender agora, confortavelmente, um ato praticado sobre uma carga emotiva tão forte?

Não sei se conheço pessoas que poderiam compreender o porquê. Quando se está triste, depressivo, não existem muitas opções. É fácil condenar quando se está em um lugar plano, calmo, e pode-se ver o horizonte. Quando se está no poço, onde os limites de seu alcance podem ser tocados com os braços, vivemos outra realidade. Vivemos o desespero.

Somos livres. Invariavelmente livres. Independente do (des)credo de cada um. Eu a chamo de liberdade natural, direito in natu de escolha. Os cristãos preferem rotular de livre arbítrio. Não importa a palavra. Importa a essência. Temos sempre o direito a uma escolha.

Por que, então, culpá-la por tal escolha? Esqueçam dos motivos, esqueçam da tristeza. Era a vida dela, e ela assim decidiu. Ninguém escolhe racionalmente o que quer para si o tempo todo, e, além do mais, sua escolha recaiu sobre si mesma. Alguns poderiam dizer que a amavam, que isso prejudicou todos aqueles que dela gostavam, que não pensou nos outros. Mas de quem era a vida? Quem estava sozinha, sofrendo? Quem não era compreendida, quem não era feliz?

Também sou, no domínio das minhas razões, completamente contrário ao suicídio, que fique claro. E pretendo manter sempre esse domínio sobre minhas emoções. Mas fora de si, quem é capaz de cumprir à risca seu código de ética, de não infringir suas convicções morais?

É egoísmo querer ter uma pessoa por perto, quando ela quer estar longe. Nós, seres humanos, não somos brinquedos, marionetes, objetos de ninguém. Não somos res. Somos livres e pertencemos à nós mesmos. Eu? Eu sou meu!

Talvez tenha sido um momento de angústia terrível, tristeza aguda, que cega, limita o raciocínio. Ou então tenha sido, há algum tempo, premeditado. O que importa? Seja qual for a situação, não compreenderemos a sua razão a não ser que estejamos em análogo estado emotivo, sobre a mesma carga psicológica, hormonal.

Eu sou ateu, mas não gosto desta palavra. Ela tem uma sombra negra, uma carga de preconceito muito grande. Tenho uma tristeza comum àqueles que compartilham comigo esta visão: a morte é o fim de tudo. Não é fácil viver toda uma vida voltada para um fim material, carnal, e ao mesmo tempo espiritual. Ver na morte o fim de tudo é assombroso. No entanto, talvez seja esta a única situação que me vejo com a consciência mais limpa, plena, leve.

Não vejo, como aqueles que têm suas crenças, o suicídio como algo diferente. Não temo por ela a danação eterna, retrocesso kármico, tão pouco um espírito perturbado condenado a sofrer neste plano.

Vejo apenas a liberdade, alívio. É o repouso eterno, é o desligamento de um corpo, o instrumento de consciência sendo desligado, nada mais. Não vejo diferença quando se trata de morte, e tão pouco me sinto feliz com minha convicção. No entanto, não carrego todo mal que vem embutido na morte pelas próprias mãos.

Palavras assustadoras, quase proibidas. "Ateu"... "Suicídio"...

Algumas coisas marcam a gente. Não a conhecia, mas posso afirmar que fui solidário com as pessoas que a conheciam e dividiam comigo o mesmo ambiente de trabalho. Mas ao mesmo tempo, coloquei-me em um raro estado de observação, e vislumbrei este contexto que, por fim, mexeu comigo. É uma atitude muito drástica, forte, carregada de simbolismo. E também de futilidade.

Eu me pergunto: Quando foi que eu vi alguma pessoa completamente miserável cometer suicídio? Não, não me lembro.

Temos, todos nós, dois tipos de necessidades: as primárias e as secundárias. De fato existimos apenas com as primárias. Comer, dormir, beber, respirar, reproduzir. Nada mais. Existimos, mas não vivemos.

Nós precisamos é de todo o resto. Das necessidades abstratas, criadas pelo meio cultural em que vivemos. Essas que não existem no plano real, não importam a nossa sobrevivência. São objetos ideais da nossa conveniência. Todas as necessidades secundárias que temos e que foram criadas por nós. E, estranhamente, vivemos (nós, sociais) em função destas necessidades secundárias. Prefeito, Juiz, Gerente. Orkut, MSN. Miss-alguma-coisa, Doutor. Tudo ficção, criação cultural da sociedade. O que é o dinheiro senão um pedaço de papel ao qual depositamos um valor abstrato?

Hoje, para aquele rapaz que vai se suicidar, comer e beber é esporte. Ele não precisa se preocupar com a próxima refeição. Nos preocupamos com a bolsa de valores, com o dólar, com o preço da soja, a taxa de juros. Com o quem a atriz se casou, de quanto a seleção venceu.

Ninguém se suicida por frustração primária. “Criamos nossas próprias expectativas para nela amargurarmos nossa derrota”. Ninguém comete suicídio porque quis comer, por toda a vida, uma lagosta, e com 48 anos, ainda não conseguiu.

Este mundo abstrato, essa sociedade abstrata, essas comunidades abstratas são tão poderosas que limitam a necessidade de nossa existência em suas esferas. Somos prisioneiros delas, pois fora somos dispensáveis, descartáveis. O que é o bullying senão uma retaliação aos jovens que não se submetem às essas regras abstratas?

Hoje, tenho plena convicção que estou imune a tal atitude. Ledo engano. Mas prefiro pensar assim. Nossa existência de fato escapa a estes costumes sociais, morais e de direito. Nossa felicidade infelizmente não. Se nossa luta diária fosse por um pedaço de pão e um pouco de vinho, seríamos, ao final de cada dia, felizes. Mas são exatamente países como a Suíça e o Japão que amargam índices altíssimos de suicídio.

Não culpo. Não somos imunes às necessidades sociais. Meu histórico aponta a compreensão de momentos tristes. Vivo, quase todo o tempo, imerso em minhas convicções morais e filosóficas que, invariavelmente, são igualmente abstratas, e igualmente frustrantes. Amargo derrotas quase todo o tempo. Não valorizo minhas vitórias tanto quanto algumas pessoas alheias valorizariam.

Tenho comigo apenas uma certeza: que na morte encontramos a paz. A mesma consciência que temos de nós mesmos é tão abstrata quanto às leis sociais a que nos sujeitamos. Uma consciência que se apaga encontra, no vazio da não-existência, a paz eterna.

*J. era uma garota, de vinte e poucos anos, que cometeu suicídio em 2005. Este texto foi escrito cerca de três dias após sua morte. Algumas das convicções pessoais deste autor já sofreram alterações. Outras, ainda são as mesmas.

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